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Aqui pobre, lá escrava

Segundo Marina Lemle
[www.unodc.org] A crença em promessas de uma vida rica e cheia de alternativas leva milhares de brasileiros a deixarem seus lares todos os anos em busca de um futuro de sonho. Só que centenas acordam num pesadelo falado em outra língua.
Considerado uma forma moderna de escravidão, o tráfico de pessoas no Brasil vitima principalmente mulheres jovens, solteiras e de baixa escolaridade, que são enganadas por homens mais velhos e acabam reféns de redes internacionais de prostituição.
Sem documentos, sem dominar o idioma local e com medo de serem presas e deportadas, elas não denunciam seus algozes, e assim permanecem alimentando um mercado que movimenta entre US$ 7 bilhões e US$ 9 bilhões por ano, sendo uma das atividades mais lucrativas do crime organizado transnacional, segundo levantamento do Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crime (UNODC). Estima-se que, submetida a exploração sexual ou trabalhos forçados, cada pessoa traficada renda a uma rede criminosa cerca de US$ 30 mil. Segundo o Relatório Mundial do Tráfico de Pessoas do UNODC (2006), cerca de 54% das vítimas no mundo todo são mulheres e 44% são crianças.
O primeiro grande estudo sobre o tema no Brasil foi a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf), de 2002, coordenada pela professora da Universidade de Brasília Maria Lúcia Pinto Leal. O estudo identificou 241 rotas do tráfico, sendo 141 internacionais.
No Brasil, a pesquisa da UNODC, feita em parceria com o Ministério da Justiça, foi realizada nos estados de Goiás, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo como base informações de 22 processos judiciais e 14 inquéritos policiais instaurados entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003. Goiás e Ceará foram escolhidos por já terem sido identificados como importantes pontos de origem das vítimas dessa atividade criminosa no Brasil. E Rio e São Paulo, por serem as principais portas de saída dessas vítimas. Os dados utilizados são da Polícia Federal, da Justiça e de entidades que atenderam vítimas. “A pesquisa não é um retrato fiel da situação. Ela colheu amostras de uma realidade muito maior”, afirma Marina Oliveira, gerente do projeto de Tráfico de Pessoas do UNODC.
Para combater o problema, o governo federal deverá lançar no fim de agosto o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que traçará estratégias de prevenção, repressão e atenção às vítimas. Com validade de dois anos, o plano deverá ser revisado após esse período. Por enquanto, a linha de atuação do governo pode ser conhecida na Cartilha da Política Nacional sobre o Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (arquivo PDF) [www.unodc.org].
Consciente da amplitude global e multidisciplinar do problema, o governo está contando com ações integradas não só de diferentes ministérios – são 13 órgãos federais envolvidos no desenho do plano – como de organismos internacionais e organizações da sociedade civil, além de estimular parcerias com governos estaduais.
Na primeira fase do projeto da UNODC com o Ministério da Justiça, entre 2003 e 2005, foram feitas capacitações e campanhas no Rio de Janeiro, resultando no aumento em mais de 50% no número de registros e condenações por tráfico de pessoas, segundo a Polícia Federal e o Sistema Federal de Justiça. Entretanto, Marina Oliveira (foto) conta que ficou faltando a assinatura de um acordo entre os governos federal e estadual.  
“Ficou clara a importância do protagonismo dos estados para que possam semear políticas públicas sustentáveis de enfrentamento ao tráfico de seres humanos”, afirma. Mudado o governo, o Rio de Janeiro deverá participar do esforço nacional através da Secretaria de Ação Social e Direitos Humanos.
 
Rede ‘do bem’ contra redes ‘do mal’
Além dos 13 ministérios envolvidos no projeto governamental, 12 ONGs e dois organismos internacionais participam de uma rede voltada para o enfrentamento do tráfico de seres humanos. “É um tema complexo, que exige uma série de competências técnicas, já que o tráfico de pessoas envolve questões estruturantes como fatores econômicos e culturais. Daí a importância da formação de uma rede não só de serviços públicos, mas também de outros órgãos, como universidades, ONGs e organismos internacionais”, afirma Marina. Para facilitar a troca de informações e traçar recomendações, a UNODC está organizando, para outubro, um seminário nacional preparatório para o Fórum Global em Viena no fim do ano.
Para Marina, o governo federal vem sinalizando ter boa vontade política para o enfrentamento do problema. “O plano nacional é resultado do esforço de integrar ações. A questão agora é como ele será implementado”, observa.  
De acordo com ela, uma das maiores dificuldades é obter denúncias e informações das próprias vítimas. “O primeiro problema é que as pessoas não se reconhecem como vítimas. Além disso, elas têm medo de denunciar e não têm clareza sobre como o estado poderia ajudá-las”, explica.
Banco de dados
A UNODC Brasil está empenhada no levantamento de dados do tráfico de seres humanos na América do Sul, que integrará a radiografia do tráfico no mundo. O relatório da América do Sul – que tem no Brasil seu ponto focal – será lançado em março de 2008. A UNODC dedica-se ainda à construção de um banco de dados nacional sobre o tema, o que, segundo Marina Oliveira, é um processo longo, que implica em negociações para se chegar a entendimentos comuns, e depois depende de as pessoas alimentarem regularmente o sistema.
Marcos legais
O Brasil é signatário do Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, mais conhecida como Convenção de Palermo. O documento define o tráfico de seres humanos como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”.
O mesmo documento define exploração como “a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos”. O protocolo deixa claro que o consentimento da vítima de tráfico é irrelevante para que uma ação seja caracterizada como tráfico ou exploração de seres humanos, uma vez que ele é, geralmente, obtido sob malogro.
No momento, o Ministério da Justiça está estudando como adequar a legislação brasileira ao protocolo.
Em defesa dos migrantes
Para Frans Nederstigt, jurista internacional e articulador do Projeto Trama – Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas [www.projetotrama.org.br], consórcio que reúne quatro instituições – Criola, IBISS, Projeto Legal e Unigranrio -, a assinatura do Protocolo de Palermo não é suficiente diante da realidade do mundo globalizado. Segundo ele, o protocolo fala apenas superficialmente sobre os direitos das pessoas traficadas, traz recomendações, em vez de reconhecer direitos, e foca apenas na repressão. “Como reprimir um problema que é fruto das causas estruturais da globalização?”, questiona.
Nederstigt defende a assinatura da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias [www.december18.net], pois acredita que quando se for possível migrar de forma segura e regular e os migrantes tiverem seus direitos garantidos, ninguém mais cairá nas redes criminosas do tráfico humano. “A ampliação de direitos de migrantes, incluindo os indocumentados, é uma forma eficaz de enfrentar o tráfico de pessoas”, afirma.
Para o jurista holandês, a convenção é uma solução que foge da hipocrisia de tratados que definem formas de repressão, mas não estabelecem direitos. “No mundo globalizado, produtos são negociados e transportados pelo mundo inteiro. Nesse contexto, trabalhadores também deveriam poder buscar melhor lugares para viver. A migração não é a solução da pobreza, mas é um fato da realidade, e isso está virando um problema, porque as pessoas ficam vulneráveis para a exploração”, conclui.  
[www.comunidadesegura.org] [www.comunidadesegura.org]
Clique na imagem ou aqui [www.comunidadesegura.org] para baixar o cartão em arquivo PDF.
Com o objetivo de informar a população sobre a migração, alertando para os riscos do tráfico de pessoas, o Projeto Trama aproveitou os jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, quando milhares de estrangeiros visitam o país, para lançar o cartão postal “Tráfico de Pessoas é Jogo Sujo”. A idéia é que as pessoas enviem o postal para o Conselho Nacional de Imigração, com endereço indicado no próprio postal, pressionando as autoridades a ratificar a Convenção do Trabalhador Migrante.
Dentre os 42 países que participam dos Jogos Pan-Americanos, apenas 13 ratificaram a convenção. Os principais países de destino – que recebem migrantes e a onde acontecem a exploração e a escravização de trabalhadores migrantes – não a assinaram nem a ratificaram, a exemplo do Brasil, Canadá, Estados Unidos, Japão, Austrália e Nova Zelândia, além da União Européia como um todo.
Capacitação policial
Para capacitar policiais na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, docentes da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e policiais instrutores darão um curso de 40 horas sobre Tráfico de Pessoas para 45 policiais civis, militares e federais e cinco guardas municipais de todo o país, de 27 a 31 de agosto, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Durante o curso, os alunos irão desenvolver monografias com textos de análise e ou de referência sobre o tema.  
O curso é uma parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o IBCCrim, a Unifesp, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), a Secretaria Nacional de Segurança Pública  e o UNODC. São oferecidas vagas a candidatos dos estados com os quais a OIT realiza projetos sobre tráfico de pessoas: Pará, Ceará, Paraná, Amazonas, Acre, Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão e São Paulo. Quatorze vagas serão preenchidas por policiais mulheres.
Para Renato Sérgio de Lima, sociólogo da USP e membro do Fórum de Segurança Pública, o curso é importante por ser o primeiro a fazer uma costura interinstitucional, envolvendo o governo dos Estados Unidos e a sociedade civil, e com uma abordagem que vai além da repressiva. “O curso vai estimular ações de prevenção e sensibilização dos policiais não só para criminalizar condutas e sim enfrentar problemas das rotas – quais são, quem explora. É mais do que prender, é encarar o problema como relevante”, afirma o professor.
Um ponto importante, para Lima, é que há poucos diagnósticos e muitas questões morais. “Precisamos ter uma perspectiva epidemiológica para ajudar a desenhar o tamanho do problema. Avaliação moral não cabe ao estado. A exploração de pessoas deve ser perseguida”, enfatiza.
A seleção dos policiais e guardas municipais que participarão do curso será de responsabilidade de uma Comissão de Seleção composta por representantes das instituições pareciras. As inscrições deverão ser enviadas até 10 de agosto para ataets@forumseguranca.org.br. Veja o edital do curso Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. [www.unodc.org]
Saiba mais:
Cartilha da Política Nacional sobre o Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (arquivo PDF) [www.unodc.org]
I Diagnóstico Sobre o Tráfico de Seres Humanos São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará (arquivo PDF) [www.unodc.org]
Relatório Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que regressam ao Brasil via o aeroporto de Guarulhos (arquivo PDF) [www.unodc.org]
Em outros sites:
Projeto Trama [www.projetotrama.org.br]
Fórum de Segurança Pública [www.forumseguranca.org.br]
UNODC – Programa de Combate ao Tráfico de Seres Humanos [www.unodc.org]

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