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Prisão civil do devedor de alimentos na Covid-19

Prisão civil do devedor de alimentos na Covid-19

Esta matéria, publicada na íntegra, de inteira responsabilidade do autor, é uma contribuição recebida por e-mail e não representa, necessariamente, o espírito da campanha. O título se refere à legislação brasileira.

Por Carlos Eduardo Rios do Amaral

Durante seus trabalhos a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 elegeu seu bem maior em nossa Constituição Republicana, qual seja, a criança. À criança, proclama nossa Constituição Cidadã, como carinhosamente a chamava Ulysses, deve ser assegurado com absoluta prioridade o direito à vida, à alimentação e à dignidade, colocando-a a salvo de toda forma de negligência e crueldade.

O inadimplemento voluntário e inescusável da pensão alimentícia condena a criança ao horror da fome, ao choro da morte que bate à sua porta. Em última análise derroga o sonho democrático de construção de uma nação fundada na dignidade da pessoa humana, senão ab-roga por completo sua Constituição. Uma Constituição não deve mentir ao seu povo.

Em seu inesquecível encontro com as crianças na Baixa do Bonfim, na cidade de Salvador, em 1991, Sua Santidade, o Papa João Paulo II, tomado de forte emoção pela presença de milhões de brasileiros, suplicou a todos:

“Quantas vezes na minha vida li e ouvi as palavras de Nosso Senhor dizendo que ‘quem não se fizer parecido às crianças não entrará no Reino dos Céus’ ( Mt 18, 3), e ‘quem colocar um obstáculo para uma criança cair, seria melhor ser jogado ao mar’ ( Mt 18, 6). Quando, queriam afastar d’Ele as crianças, Ele reclamou: ‘Deixem vir a mim as criancinhas’ ( Mt 19, 14).

Por isso, eu, que sou indigno discípulo de Jesus e faço as vezes d’Ele na Igreja, fiquei feliz quando soube que as crianças do Brasil queriam me encontrar. Eu disse: ‘Deixem que elas venham ao Papa!’.

Estou ainda mais feliz porque são vocês, crianças da Bahia, que hoje se encontram comigo em nome de todas as crianças do Brasil. Digo então a Vocês: ‘Crianças da Bahia, bom dia! Crianças do Brasil bom dia!’

Quero dizer-lhes, antes de tudo, que vocês são muitos importantes para o Papa. Importantes porque, aqui no Brasil vocês são muitas e formam grande parte da população. Vocês sabiam disto? Importantes porque são o futuro do Brasil, o futuro da Nação, importantes porque são também o futuro da Igreja. Vocês sabiam? Devem saber mais e mais!

O que é bonito em vocês, crianças, é que cada uma olha as outras crianças e dá as mãos, sem fazer diferença de cor, de condição social, de religião. Vocês dão as mãos umas às outras. Tomara que os grandes fizessem também como vocês e acabassem com toda discriminação. Só assim o mundo poderia encontrar a paz. Vocês querem a paz no mundo? Vocês querem um mundo em paz? Para serem realmente importantes, vocês precisam de uma família, de pais unidos, de um clima de amor e de paz. É preciso ajudar às crianças que nasceram e estão crescendo fora de uma verdadeira família. Mas é preciso também fazer alguma coisa para que todas as crianças vejam respeitado seu direito de terem pais unidos, irmãos que se amam, uma casa harmoniosa e feliz. Se vocês querem isso levantem a mão direita!

Para serem importantes, vocês precisam de escolas, onde todas, sem exceção, aprendam a ler e a escrever, a fazer as contas e tudo mais que é necessário para crescer na vida. Crianças que já vão à escola, vocês querem ser aplicadas e estudiosas para aprender muito? Vocês querem que as outras, que ainda não vão à escola, tenham boas escolas para estudar?

Se ser criança é tão importante, então todas as crianças são importantes, todas as crianças são importantes, todas! Não pode nem deve haver crianças abandonadas. Nem crianças sem lar. Nem meninos e meninas de rua. Não pode nem deve haver crianças usadas pelos adultos para a imoralidade, para o tráfico de drogas, para as pequenas e grandes infrações, para a prática do vício. Não pode nem deve haver crianças amontoadas em centros de triagem e casas de correção, onde não conseguem receber uma verdadeira educação. Não pode nem deve haver, é o Papa quem pede e exige em nome de Deus e de seu Filho, que foi criança também Jesus, não pode nem deve haver crianças assassinadas, eliminadas sob pretexto de prevenção ao crime, marcadas para morrer! Vocês querem que todas as crianças sejam felizes? Querem uma cidade, um Estado, um País, sem crianças abandonadas e meninos e meninas de rua?”

Uma Constituição que permite que suas crianças morram de fome, sob qualquer pretexto, não pode e não deve pedir a proteção de Deus em seu “Preâmbulo”. O Art. 5º, Inciso LXVII, e o Art. 227, Caput, da Constituição do Brasil não permitem que nossas crianças morram de fome em razão de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. A obrigação alimentícia deve sempre ser paga, essa é a vontade constitucional, desautorizada qualquer ponderação de outros valores, inclusive a liberdade. A liberdade do verdugo mau pagador cede ao seu dever de assegurar à criança com absoluta prioridade o direito à vida.

A sempre badalada Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, de inegável conteúdo garantista, instrumento de proteção internacional dos direitos essenciais da pessoa humana, também excepciona a garantia fundamental da liberdade em amparo à criança credora da pensão alimentícia:

“Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

À luz deste dispositivo do Pacto de São José da Costa Rica o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 25, decidindo que é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito, mas manteve intocável a regra da prisão civil decorrente do inadimplemento da obrigação alimentar:

“DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.

(HC 87585, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00237)”.

A Convenção Sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas, ratificada pelo Governo brasileiro em 1990, estabelece rígida diretriz que deve ser observada pela Justiça de cada país que integra essa organização intergovernamental:

“Artigo 3
1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.

Certamente, a fome jamais atenderá ao interesse maior da criança. Quando, como e onde condenar uma criança à dor e ao desespero da fome atenderá ao seu “interesse maior”?

As Nações e povos, desde os seus mais remotos tempos da Antiguidade, não têm uma tradição de respeitar tratados e convenções internacionais, muito menos sobre direitos humanos, mas chega a ser curioso ou interessante assistir ao exercício dialético estatal de convencer alguém de que a fome atende ao “interesse maior” da criança em determinado momento ou ocasião. Talvez seja mesmo uma tentativa de revogação da Biologia, enquanto ciência. Algo do tipo, o triunfo e a predecessão da retórica de Estado sobre a vida da pessoa humana em fase de desenvolvimento.

Certa vez disse Madre Teresa de Calcutá:
“Senhor, quando eu tiver fome, dai-me alguém que necessite de comida.
Quando tiver sede, dai-me alguém que precise de água.
Quando sentir frio, dai-me alguém que necessite de calor.
Tornai-nos dignos, Senhor, de servir nossos irmãos que vivem e morrem pobres e com fome, no mundo de hoje.
Dai-lhes, através das nossas mãos, o pão de cada dia e dai-lhes, graças ao nosso amor compassivo, a paz e a alegria”.

De que servirá o Art. 4º do Estatuto da Criança consignar que é dever do Estado e da família efetivar os direitos referentes à vida, à alimentação e à dignidade da criança, com absoluta prioridade, se o Direito alforria o devedor voluntário e inescusável de sua obrigação alimentícia?

O Direito deverá escolher entre a absoluta prioridade da criança ou do insolente mau pagador da obrigação alimentícia que condena voluntariamente o próprio filho menor à fome e à mendicância. O Estatuto da Criança – e não o “Estatuto do Desespero”! –, de sua parte, fez a feliz escolha pela parte mais fraca e vulnerável. Para onde vai o Operador do Direito de 2020? “Quo vadis?”

Hoje, a que se presta o Art. 5º do Estatuto da Criança que afirma que nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligência e crueldade, punindo-se na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais? Seria uma mentirazinha? Uma promessa futura ou irrealizável orquestrada pelo legislador ordinário? Ou mesmo um baita de um estelionato normativo para encobrir um “vale-tudo” nacional? Como seria a promoção dos “direitos fundamentais” da criança na situação de fome consentida?

Nenhum ato normativo, de qualquer espécie e autoridade, poderá ter a eficácia de prestigiar a fome, mitigando ou neutralizando a proteção e defesa da criança deseja pela Constituição Federal de 1988, em total harmonia com os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil.

Enfim, em defesa da vida está aberto o caminho para o reconhecimento da inconstitucionalidade pela via incidental ou difusa de qualquer e eventual ato normativo que prestigie o inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia do mau pagador, condenando a criança ao horror da fome, ao choro da morte que certamente baterá à sua porta.

“Romam vado iterum crucifigi”.

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Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo

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